Após o transcurso de quase um ano da deflagração da “Operação Lava Jato” pela Polícia Federal, o instituto da delação premiada ganhou especial atenção dos veículos de comunicação e do público de maneira geral. É com a ampla divulgação da operação na mídia que os brasileiros passaram a conhecer, ainda que de maneira tímida, referido instituto, porém poucos são aqueles conhecem sua história e suas facetas contraditórias.
A Inglaterra, registra-se a título de curiosidade, foi um dos primeiros países a embasar suas decisões em acordos de delação premiada, dando origem a figura do colaborador da justiça.
Todavia, foi nos Estados Unidos, na década de 60, que a delação premiada, lá chamada de plea negotiation, ganhou relevância jurídica. Os mafiosos italianos, moradores da cidade de Corleone e pertencentes à Cosa Nostra, recusavam-se a colaborar com a justiça norte-americana, pois temiam represálias por parte daqueles que permaneciam nas ruas. Foi então que surgiu a ideia de oferecer uma recompensa a quem delatasse seu comparsa. Em troca dos testemunhos e a colaboração com a justiça, a Corte americana oferecia ao colaborador a redução de pena, ou até mesmo a extinção de sua punibilidade.
Atualmente, a delação premiada é considerada um poderoso instrumento no combate aos crimes e às organizações criminosas, pois o colaborador, além de confessar seu próprio delito, auxilia a polícia e a justiça a angariar novas provas, possibilitando, desta forma, o desmantelamento da quadrilha e a prisão dos infratores.
Entrementes, a delação premiada, como abordada nos dias de hoje, revela uma faceta contraditória com os sistemas democráticos: a “justiça negociada”.
Não só por institucionalizar a “traição”, positivando-a em Lei, a delação premiada ofende, também, a igualdade e a isonomia, princípios fundamentais insculpidos em nossa Constituição Federal, uma vez que agentes que praticam as mesmas condutas possuem penas distintas, pelo simples ato de um delatar o outro. Tal fato tem como decorrência a banalização de crimes, em especial os econômicos, pois agentes de alto escalão, caso colocados em face de ação criminal, pela posição que ocupam, podem “apontar dedos” a fim de se ver livre de imputações.
Ainda, nos “porões da delação”, não são raros os casos de “blefe” dos agentes estatais, tornando o processo penal um verdadeiro “jogo”, onde o que interessa, em sua essência, não é a busca pelo modo e o tamanho da afronta aos bens juridicamente tutelados, mas tão somente à busca por um responsável específico, não raro alguém de expressão, o que acaba por gerar um “espetáculo midiático”, causado pelo famigerado “furor incriminatório”.
Na mesma trilha, qual o verdadeiro valor de prova que deve ter uma delação premiada? Nos dias de hoje, as decisões judiciais são cada vez mais calcadas nas delações premiadas. Não é crível que um corréu queira apenas “contar o que aconteceu”, atribuindo a ele mesmo porção igual de responsabilidade. O natural, por outro lado, é que um corréu queira atribuir a maior parte de responsabilidade ao outro, até porque, quando dois ou mais corréus tem o mesmo conhecimento do fato criminoso, apenas o primeiro terá direito a delação premiada, o que gera, por conseqüência, a possibilidade (cada vez mais real) de condenações com base na versão de um outro acusado do mesmo crime.
O que deve servir de reflexão é: qual o verdadeiro objetivo da delação premiada? Será que foi o instrumento criado para “tampar os buracos” deixados pelas falhas de investigação? A “traição”, ou o depoimento de outro corréu, deve servir como base de condenação? Qual o verdadeiro fim da persecução penal, responsabilizar os agentes ativos de crimes, ou apenas aqueles que não foram “malandros” ou rápidos o suficiente para delatar um esquema criminoso?
Thiago Ferrari Ribeiro e Rodolfo Macedo do Prado, advogados especialistas em direito penal, atuantes no escritório Farah, Gomes e Advogados Associados de Florianópolis.
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